Ponto de vista - 16 fev. 2012
Destacamos o artigo intitulado "Filmes de Papel", da autoria de Cora Rónai, publicado hoje na página 12 do "Segundo Caderno" d'O GLOBO, que aborda sobre livros que se tornaram sucesso nos cinemas e vice-versa. Os grifos são nossos:
"É possível que eu só não tenha reparado antes, mas há tempos não via tantos filmes em cartaz nos cinemas fazendo sucesso, simultaneamente, nas livrarias: “Precisamos falar sobre o Kevin” e “A resposta” (“Histórias cruzadas”) ganharam novas edições com capas que remetem aos cartazes dos respectivos filmes, ao passo que “Compramos um zoológico” e “Os descendentes” já chegaram ao Brasil à luz da sua boa estrela hollywoodiana. Ainda não assisti a nenhum dos filmes, mas gostei dos livros, mesmo quando deixam a desejar — caso nítido de “Kevin”. Os quatro, juntos ou separados, fazem um kit perfeito para quem quer sumir do mundo durante o carnaval.
(Não, não me esqueci da nova versão de “Os homens que não amavam as mulheres”, da trilogia “Millennium” — mas este, para mim, é um caso complicado, porque acho que sou a única pessoa no mundo que não gostou dos livros e, menos ainda, da sua versão cinematográfica sueca. Ainda não tenho certeza se quero ver a versão americana.)
As relações entre filmes que nascem de livros e os livros que lhes dão origem são sempre delicadas. Os leitores que se tornam espectadores vão ao cinema para conferir como foi contada a história que já conhecem; os espectadores que se transformam em leitores se apegam aos livros para passar mais tempo na companhia de um filme que os encantou, e costumam reagir mal às diferenças entre o que está nas telas e o que está nas páginas. Leitores habituais tendem a gostar mais dos livros do que dos filmes, o que talvez se explique pelo ritmo e pelas características que a nossa imaginação confere à história escrita: ao ler um livro somos coautores da trama, dando forma a ambientes e personagens. Se o escritor menciona uma garrafa azul, por exemplo, existirão tantas garrafas azuis diferentes quanto leitores, ao passo que no cinema veremos, todos, a mesmíssima garrafa.
Meu livro favorito da atual leva cinematográfica é “A resposta”, título brasileiro para “The help”, que chegou às telas como “Histórias cruzadas” (Bertrand Brasil, tradução de Caroline Chang). Por atrapalhada que seja essa quantidade de títulos, ninguém precisa se preocupar: a editora percebeu a confusão potencial que tinha em mãos e deu um jeitinho de pôr todos eles na capa. Comecei a lê-lo em inglês, no Kindle; depois me lembrei que tinha a edição brasileira e fui atrás do livro “de verdade”. No livro-livro, tenho a exata noção de quanto falta para acabar a leitura, posso dar rasantes nos capítulos à frente e até uma lida em diagonal nas últimas páginas. Esse vaivém é muito chato, quando não impossível, num ebook. Mas “A resposta” é uma armadilha perigosa para um tradutor. Kathryn Stockett reproduz o dialeto dos negros do Sul dos Estados Unidos quando a história é contada pelas empregadas Aibileen e Minny. Caroline Chang, a tradutora, teve o bom senso de evitar linguagens diferenciadas, que soariam ridiculamente artificiais em português; o resultado é que, tendo pulado para a versão brasileira, não senti mais nenhuma saudade do original, e deixei o Kindle de lado.
A história, vocês sabem, gira em torno de uma moça branca recém-saída da faculdade que, em pleno Mississippi dos anos 1960, resolve escrever um livro dando voz às empregadas negras da sua cidade, tratadas como seres inferiores pelas patroas brancas. Apesar de certo maniqueísmo — as negras são invariavelmente sábias e batalhadoras, as brancas, inúteis e sem noção, quase caricaturais — o livro é ágil, bem escrito, ótimo de ler. Agora estou louca para ver o filme.
“Precisamos falar sobre o Kevin”, de Lionel Shriver (Intrínseca, tradução de Beth Vieira e Vera Ribeiro), é, dos nossos quatro livros de cinema, o mais pretensioso — o que faz dele, igualmente, o mais irritante. Eva, mãe de Kevin, um adolescente sociopata que promoveu uma carnificina na escola, relembra a sua relação com o filho numa série de cartas para o ex-marido. O truque é fraudulento, porque alguém que acompanhou aquela relação não precisa da maior parte das informações recebidas, que se destinam, de fato, ao respeitável público. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um interessante questionamento sobre a falta de amor entre pais e filhos se perde por causa da mão pesada de Shriver, que pinta Kevin como um monstro desde bebezinho. Ainda assim, o livro é altamente legível, sobretudo para quem gosta de uma boa dose de horror: devorei suas 463 páginas em dois dias, mas confesso que não tenho nenhuma vontade de ver o filme.
“Compramos um zoológico”, de Benjamin Mee (Objetiva, tradução de Angela Pessôa) e “Os descendentes”, de Kaui Hart Hemmings (Alfaguara, tradução de Cássio de Arantes Leite) têm, curiosamente, um ponto em comum: os dois são narrados por homens que perdem as esposas no decorrer da ação. Tirando isso, não podiam ser mais diferentes, até porque “Compramos um zoológico” é autobiográfico, ao passo que “Os descendentes” é ficção — o que, de quebra, serve para provar que a vida real tem, por vezes, enredos mais interessantes do que o mundo da fantasia. Se você gosta de histórias de bichos e de humor britânico, não pense duas vezes, e compre este zoológico para aproveitar o feriado. Já “Os descendentes” é um romance competente que tem, pelo que fiquei sabendo, uma grande vantagem sobre o filme: não tem trilha sonora."
(Não, não me esqueci da nova versão de “Os homens que não amavam as mulheres”, da trilogia “Millennium” — mas este, para mim, é um caso complicado, porque acho que sou a única pessoa no mundo que não gostou dos livros e, menos ainda, da sua versão cinematográfica sueca. Ainda não tenho certeza se quero ver a versão americana.)
As relações entre filmes que nascem de livros e os livros que lhes dão origem são sempre delicadas. Os leitores que se tornam espectadores vão ao cinema para conferir como foi contada a história que já conhecem; os espectadores que se transformam em leitores se apegam aos livros para passar mais tempo na companhia de um filme que os encantou, e costumam reagir mal às diferenças entre o que está nas telas e o que está nas páginas. Leitores habituais tendem a gostar mais dos livros do que dos filmes, o que talvez se explique pelo ritmo e pelas características que a nossa imaginação confere à história escrita: ao ler um livro somos coautores da trama, dando forma a ambientes e personagens. Se o escritor menciona uma garrafa azul, por exemplo, existirão tantas garrafas azuis diferentes quanto leitores, ao passo que no cinema veremos, todos, a mesmíssima garrafa.
Meu livro favorito da atual leva cinematográfica é “A resposta”, título brasileiro para “The help”, que chegou às telas como “Histórias cruzadas” (Bertrand Brasil, tradução de Caroline Chang). Por atrapalhada que seja essa quantidade de títulos, ninguém precisa se preocupar: a editora percebeu a confusão potencial que tinha em mãos e deu um jeitinho de pôr todos eles na capa. Comecei a lê-lo em inglês, no Kindle; depois me lembrei que tinha a edição brasileira e fui atrás do livro “de verdade”. No livro-livro, tenho a exata noção de quanto falta para acabar a leitura, posso dar rasantes nos capítulos à frente e até uma lida em diagonal nas últimas páginas. Esse vaivém é muito chato, quando não impossível, num ebook. Mas “A resposta” é uma armadilha perigosa para um tradutor. Kathryn Stockett reproduz o dialeto dos negros do Sul dos Estados Unidos quando a história é contada pelas empregadas Aibileen e Minny. Caroline Chang, a tradutora, teve o bom senso de evitar linguagens diferenciadas, que soariam ridiculamente artificiais em português; o resultado é que, tendo pulado para a versão brasileira, não senti mais nenhuma saudade do original, e deixei o Kindle de lado.
A história, vocês sabem, gira em torno de uma moça branca recém-saída da faculdade que, em pleno Mississippi dos anos 1960, resolve escrever um livro dando voz às empregadas negras da sua cidade, tratadas como seres inferiores pelas patroas brancas. Apesar de certo maniqueísmo — as negras são invariavelmente sábias e batalhadoras, as brancas, inúteis e sem noção, quase caricaturais — o livro é ágil, bem escrito, ótimo de ler. Agora estou louca para ver o filme.
“Precisamos falar sobre o Kevin”, de Lionel Shriver (Intrínseca, tradução de Beth Vieira e Vera Ribeiro), é, dos nossos quatro livros de cinema, o mais pretensioso — o que faz dele, igualmente, o mais irritante. Eva, mãe de Kevin, um adolescente sociopata que promoveu uma carnificina na escola, relembra a sua relação com o filho numa série de cartas para o ex-marido. O truque é fraudulento, porque alguém que acompanhou aquela relação não precisa da maior parte das informações recebidas, que se destinam, de fato, ao respeitável público. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um interessante questionamento sobre a falta de amor entre pais e filhos se perde por causa da mão pesada de Shriver, que pinta Kevin como um monstro desde bebezinho. Ainda assim, o livro é altamente legível, sobretudo para quem gosta de uma boa dose de horror: devorei suas 463 páginas em dois dias, mas confesso que não tenho nenhuma vontade de ver o filme.
“Compramos um zoológico”, de Benjamin Mee (Objetiva, tradução de Angela Pessôa) e “Os descendentes”, de Kaui Hart Hemmings (Alfaguara, tradução de Cássio de Arantes Leite) têm, curiosamente, um ponto em comum: os dois são narrados por homens que perdem as esposas no decorrer da ação. Tirando isso, não podiam ser mais diferentes, até porque “Compramos um zoológico” é autobiográfico, ao passo que “Os descendentes” é ficção — o que, de quebra, serve para provar que a vida real tem, por vezes, enredos mais interessantes do que o mundo da fantasia. Se você gosta de histórias de bichos e de humor britânico, não pense duas vezes, e compre este zoológico para aproveitar o feriado. Já “Os descendentes” é um romance competente que tem, pelo que fiquei sabendo, uma grande vantagem sobre o filme: não tem trilha sonora."
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