A ira do leitor, descrita pela crônica de Joaquim Ferreira dos Santos.
* * * * *
Caixa de comentários
por Joaquim Ferreira dos Santos
Um velho amigo psicanalista, o dr.Francisco Daudt, recomenda aos seus clientes o uso do humildificador. É uma máquina a ser inventada. Cada pessoa se submeteria a ela diariamente, pela manhã, antes de sair de casa, com a finalidade de rebaixar os níveis de vaidade, arrogância e presunção. Uma máquina para nos levar de volta à nossa desimportância. Seria uma UPP do ego, que pacificaria no homem o seu desejo primitivo de, assim que colocasse os pés na rua, marchar orgulhoso sobre as hostes inimigas, ou seja, o resto da Humanidade.
Filtrados pelos raios companheiros do humildificador, todos ficaríamos mais gentis e de um tamanho compatível com o que na verdade somos. Nem deuses nem Bozos. Quase normais. O pó bíblico. Seria a máquina do “menos, meu bem, menos”, uma frase que não se aceita ouvir nem do grande amor que nos vai ao lado pelo café das manhãs. Ao fim da sessão, o humildificador nos liberaria para a convivência, naquele ponto certo de equilíbrio, fúria narcísica estabilizada, o senso de medida aguçado e a compreensão afinal de que não somos isso tudo.
Eu achava que o e-mail do leitor era o mais cruel humildificador do jornalista. O cidadão clica no endereço do cronista, um sujeito que deve se achar o rei da espécie pois acabou de publicar meia página cheia de palavras no jornal da capital, e diz o que achou. Cru, no cangote do autor, um peteleco no lóbulo, um catiripapo à sorrelfa, sem a necessidade de olhar no olho e nem mesmo se identificar com o número do RG. Semanalmente recebo algum e-mail assim. Funciona como um humildificador. É do jogo e, como previa Francisco Daudt, terapêutico.
O cidadão comprou o jornal, não gostou do que leu e quer deixar isso bem claro ao jornalista, que supõe um ser posudo e com ares de dono do mundo, do outro lado do ringue. Cai matando com o e-mail, o canhão que o mundo digital lhe pôs à mão. Mete o pau na falta de vocabulário, ri das concordâncias, lamenta a obviedade do raciocínio. Qualquer vírgula fora do lugar e são dezenas de puxões de orelha, ameaças de que vai cancelar a assinatura.
Gosto particularmente, como humildificador de cabeceira, daquele e-mail em que o leitor, após analisar o que eu tinha escrito no jornal, nem se deu ao trabalho de gastar muito tempo para explicar seu desapontamento. Seco, quase um Graciliano Ramos, sintetizou o que achara em apenas uma palavra:“Desiste”. Tem sua elegância.
De vez em quando, dependendo da ira que move o leitor, do quão lamentável ele achou a perda de tempo com o texto que comprou na banca, a crítica é enviada com cópia para o ombudsman ou o diretor de redação. “Saudades do Rubem Braga”, dizia outro, também com aquele estilo certeiro de enviar o cronista ao colo do humildificador.
Eis que agora os novos meios digitais inventaram o mais demolidor dos humildificadores — a caixa de comentários. Os cristãos jogados aos leões no Coliseu, os torcedores do Vasco que entraram na arquibancada do Flamengo, os passageiros das vans do Rio — eles são uns felizardos. Apanha-se mais na caixa de comentários. Os estupradores que chegam aos presídios, os passageiros do metrô na hora do rush, os velhinhos na fila do INSS — eles não sabem que pode ser pior ainda.
A caixa de comentários é a nova praça de touros, sendo que as bandeirolas agora são cravadas a frio na corcova do sujeito que teve a desfaçatez de escrever suas ideias. É aquele link, no final de cada texto dos sites e blogs. O leitor clica em cima e imediatamente abre-se uma caixa em branco para ele encher de comentários. Serve o que vier à cabeça. O importante é meter bronca. Os jornais têm mecanismos de filtragem impedindo a postagem de palavrões. De resto, vale tudo. Em segundos, honras construídas com muito esforço por anos de trabalho são apedrejadas com o escarro mais grosseiro. É um corredor polonês — e este texto, que ainda nem foi lido na íntegra, já deve estar fazendo jus à impressionante sanha assassina que move os assinantes das caixas, o mais doloroso de todos os humildificadores.
Chico Buarque acabou de declarar que se achava amado, suas músicas eram cantadas por todos, os shows estavam cheios — até que seu site abriu uma caixa de comentários e ele percebeu. Era odiado. Chico se considerava um trabalhador honesto e de méritos, como o Pedro Pedreiro da música. Viu pelas frestas da caixa de comentários que não passava da nova Geni a ser apedrejada. Imagine-se, então, o que sofre um cronista de segunda.
A caixa de comentários é o novo tiro aos pombos, o saco de areia do boxe, a peteca dos militares no Posto 6 e o judas do Bolsonaro. Pancada neles. Eu acho mais civilizado o chute que o Anderson Silva deu no queixo do Victor Belfort. Estava nas regras, e Victor sabe quem chutou. Na caixa de comentários, escondido atrás de um nome-fantasia, alguém percebe que chegou a hora de brincar de videogame com uma cabeça que se deu ao trabalho de pensar — e, agora não mais num email particular, mas com a audiência de toda a internet, sai chutando o corpo estendido no chão das reputações alheias.
É uma das poucas unanimidades contemporâneas. Para quem escreve em caixa de comentários, ninguém presta. Jornalistas são todos uns ignorantes; músicos, uns velhos ultrapassados. Odeia-se. Parece que o sujeito ficou cansado de jogos de violência e vai ver outro site, mas continua atirando a esmo em qualquer coisa que se mexa. É a nova briga de rua, todo mundo batendo ao mesmo tempo, agora com o soco inglês transformado em verbo soez para cutucar o fígado alheio. Humildifica, mas não precisava cuspir.
O GLOBO, Rio de Janeiro, 04 jul. 2011. Segundo Caderno, p. 10, grifo nosso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário