terça-feira, 9 de agosto de 2011

Hiroshima e outras tragédias

Ponto de vista - 09 ago. 2011

Hoje o dia foi corrido e a leitura do jornal apressada. Destaque para o artigo do Arnaldo Jabor, intitulado "Hiroshima, meu amor", publicado na página 10 do Segunda Caderno d'O GLOBO, com perspicazes reflexões sobre eventos históricos e as heranças por eles deixadas. O grifo é nosso:

"Outro dia tentei ver o filme "Hiroshima, Meu Amor", de Alain Resnais, e não consegui; parei no meio porque as cenas documentais inseridas na história são insuportáveis mesmo para nossos olhos já acostumados a horrores.

Há 66 anos, em 6 e 9 de agosto de 1945, os norte-americanos destruíram Hiroshima e Nagasaki. Todo ano me repito e escrevo artigos parecidos sobre a bomba nessa data. Mataram 150 mil pessoas em minutos e repetiram o feito três dias depois. Escrevo sempre sobre esse fato histórico, sobre essa tragédia extra depois do Holocausto, não para condenar um dos maiores crimes da humanidade, mas para lembrar que o impensável pode acontecer a qualquer momento.

A situação no Oriente Médio, mesmo com a "Primavera Árabe" ainda meio ilusória, tende a um conflito entre os cada vez mais poderosos Irã e Israel, com o corrupto Paquistão atômico ao lado da Índia também atômica. Sem falar no chiqueiro da Coreia do Norte.

Ou seja, vivemos ainda na era inaugurada por Hiroshima.

Lá e em Nagasaki, inaugurou-se a "guerra preventiva" como chamamos hoje.

Enquanto o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra fecha o século XX, o espetáculo luminoso de Hiroshima marca o início da guerra do século XXI. O horror se moderniza, mas não acaba.

Auschwitz e Treblinka ainda eram "fornos" da Revolução Industrial, eram massacres "fordistas", mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos japoneses no furacão de fogo fez em um minuto o trabalho de meses do nazismo.

O que mais impressiona na destruição de Hiroshima é a morte "on delivery", "de pronta entrega", sem trens de gado humano, morte "clean", anglo-saxônica. A bomba norte-americana foi considerada uma "vitória da ciência".

Os nazistas matavam em nome do ideal psicótico e "estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. As bombas norte-americanas foram lançadas em nome da "razão". Na luta pela democracia, rasparam da face da Terra os "japorongas", seres oblíquos que, como dizia Truman em seu diário, "são animais cruéis, obstinados, traidores". Seres inferiores de olhinho puxado podiam ser fritos como "shitakes"...

A bomba A agiu como um detergente, um mata-baratas. A guerra como "limpeza", o típico viés norte-americano de tudo resolver, rápida e implacavelmente...

A destruição de Hiroshima foi "desnecessária" militarmente. O Japão estava de joelhos, querendo preservar apenas o imperador e a Monarquia. Diziam que Hitler estava perto de conseguir a bomba - o que é mentira.

Uma das razões reais era que o presidente e os "falcões" da época queriam testar o brinquedo novo. Truman fala dele como um garoto: "Uau! É o mais fantástico aparelho de destruição jamais inventado! Uau! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um sorvete quente!...". O clima era lúdico e alucinado... tanto que o avião que largou a bomba A em Hiroshima tinha o nome da mãe do piloto na fuselagem - "Enola Gay". Esse gesto de carinho derreteu no fogo 150 mil pessoas. Essa foi a mãe de todas as bombas, parindo um feto do demônio.

Os norte-americanos queriam vingar Pearl Harbour, pela surpresa de fogo, exatamente como o ataque japonês três anos antes. Queriam também intimidar a União Soviética, pois começava a Guerra Fria; além, claro, de exibir para o mundo um show "maravilhoso" de som, luz e fúria, uma superprodução a cores do novo Império.

O espantoso também é que o Holocausto sujou o nome da Alemanha (até hoje), mas Hiroshima soa como uma vitória tecnológica "inevitável". Na época, a bomba explodiu como um alívio e a opinião pública celebrou tontamente. Nesses dias, longe da Ásia e da Europa, só havia os papéis brancos caindo como pombas da paz na Quinta Avenida sobre os beijos de amor da vitória.

Naquele contexto, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. A época estava morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas.

Hoje, a época está de novo morta para palavras, insuficientes para deter ou mesmo descrever os fatos.

Agora, não temos mais a guerra fria; ficamos com a guerra quente do deserto - a mais perigosa combinação: fanatismo religioso e poder atômico. Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado, a cruzada errada do Ocidente, apesar de Obama, que foi contra e hoje tem de resolver os crimes do Bush.

Do outro lado, temos os homens-bomba multiplicados por mil. E eles amam a morte.

Hoje, já há uma máquina de guerra se programando sozinha e nos preparando para um confronto inevitável no Oriente Médio. Estamos num momento histórico onde já se ouvem os trovões de uma tempestade que virá. Os mecanismos de controle pela "razão", sensatez, pelas "soft powers" da diplomacia, perdem a eficácia. Instala-se um progressivo irracionalismo num "choque de civilizações"; sim, sei do simplismo da análise do Huntington em 1993, mas estamos diante do simplismo da realidade, formando uma equação com mil incógnitas impossíveis de solucionar.
Como dar conta da alucinação islâmica religiosa com amor à morte do Paquistão, da Índia, de Israel, do Irã dominado por ratos nucleares em breve, da invencibilidade do Afeganistão, com a "hiper-direita" de Israel com Bibi, com o Hamas ou o Hezbollah que querem impedir o "perigo da paz"? E agora, com a súbita vitória dos "tea parties" na América e a porrada que deram no Obama?

"There is a shit-storm coming" - disse Norman Mailer uma vez.

A crença na razão ocidental foi ferida por dois desastres: o 11 de Setembro e a era Bush-Cheney, que pode renascer agora. A caixa de Pandora que Bush abriu nunca mais se fechará.

Sente-se no ar o desejo inconsciente por tragédias que pareçam uma "revelação". Historicamente, sempre que uma situação fica insolúvel, prosperam as ideias mais irracionais, mais boçais para "resolver" o problema. Mesmo uma catástrofe sangrenta parecerá uma "verdade" nova. Já imaginaram os "tea parties" no Poder?"

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